terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Hélio Luz e a nova senzala

Como fazer tese é de graça, faço uma agora: a atividade policial leva o sujeito a viver algumas das mais agudas contradições da sociedade. Ele vê em seu dia-a-dia os mecanismos do poder, da exploração, nossas mais abjetas mazelas. Quando conseguem se livrar das inúmeras atrações da cooptação à bandidagem, se transformam em cidadãos pensantes de primeira linha. É o motivo da longa admiração que tenho pelo ex-delegado e ex-deputado Hélio Luz. Há 8 anos se viu na mira dos holofotes da mídia, que tentava sua desqualificação o envolvendo em negócios com a máfia das quentinhas para presidiários no Rio de Janeiro, quando era delegado em 1990. O objetivo era claro, semelhante ao que agora fazem com o delegado Protógenes e Paulo Lacerda: enfraquecer suas inúmeras e firmes denúncias ao funcionamento do esquema podre da polícia, que envolvia políticos e onde a mídia tinha suas ações preferenciais. A acusação pouco resistiu, sumindo rapidamente do noticiário. Principalmente depois que o então deputado contra-atacou com pedido de CPI para mostrar suas próprias contas e a de todos os funcionários que se relacionaram com a empresa de quentinhas.

Sua capacidade de análise é grande. Sua experiência é enorme. E consegue pensar politicamente, denunciando como a corrupção está relacionada ao próprio sistema capitalista, o que transforma suas críticas em algo muito mais contundente. Hoje, afastado da política e da atividade policial, por incompatibilidades várias e problemas de saúde, li artigo seu publicado no portal do PT. É um dos mais claros textos onde a cortina que esconde o funcionamento da podridão do nosso sistema é aberta e podemos entender com clareza seus mecanismos. Publico aqui com comentários:


A Favela é a Senzala do Século XXI

Por Hélio Luz

Onde, realmente, está o crime organizado? Como podem os desapropriados, explorados e oprimidos se organizarem numa máfia? A questão do estado paralelo foi colocada em evidência por ocasião da morte de um jornalista, com a notícia de que ele foi seqüestrado, julgado, condenado e morto por um bando. Isso, no Tribunal, foi considerado estado paralelo e, em cima, a colocação de crime organizado. Acredito que exista o estado paralelo, mas não é isso. A marginalidade não constitui estado paralelo.

A favela é um gueto que substituiu o local da senzala. É a senzala do século XXI, onde se situa a reserva de mão de obra, os negligenciados pelo Estado - reserva mantida pelo sistema de exploração. É aí que vamos tocar na origem da polícia, criada para fazer o controle dessa população. Em 1808, era o controle social dos escravos, agora é o controle dos favelados - os negligenciados.

Obs1: E prova que a principal tarefa desta polícia é controlar esta população é o uso do Caveirão nas favelas. Alguém acredita que ele funciona para prender traficantes? Claro que seu objetivo é o de aterrorizar os moradores. Fazem hoje o mesmo que há muito era feito contra a senzala.

Falemos do Rio de Janeiro, porque fica mais específico. A tendência aqui é jogar para as áreas de exclusão a prática do crime organizado e o estado paralelo. Estado paralelo é aquele que dá enfrentamento ao Estado e modifica as suas decisões. Aquele bando que existe lá no Morro do Alemão não tinha condição de fazer isso. Eventualmente, uma quadrilha identificou um repórter que atravessava informações. Ela o considerou inimigo e o executou. Assim, fica mais explícita a tendência de jogar para as áreas de exclusão a prática do crime organizado. Ao se falar em Estado paralelo, aqui no Rio de Janeiro, estamos falando, por exemplo, na Fetranspor (Federação das Empresas de Transportes de Passageiros). Ela, sim, enfrenta e impõe suas decisões ao governo. Ela coloca oito mil ônibus nesta cidade, que não têm capacidade para isso.Todos os poderes do Estado se submetem à sua vontade. Mantém o controle do Metrô e de todo o transporte urbano no Estado do Rio de Janeiro, para fazer sua frota circular, independente de que isso contribua, ou não, para melhor qualidade de vida do cidadão. No Rio de Janeiro é constante o congestionamento, porque fazemos transporte urbano de massa em ônibus, o que é inadmissível numa metrópole.


Obs2: Bingo! Quantas reportagens você já leu na mídia com denúncias contra a Fetranspor? Nada. Por que será? Nenhuma política pública de transportes existirá com a Fetranspor.

A Fetranspor sempre atuou com força decisiva dentro da Assembléia Legislativa e nos demais poderes do Estado, inclusive no Poder Judiciário. Também em Brasília ela mostra suas garras. É a esta capacidade de agir que eu chamo poder paralelo. O criminoso comum não tem esta capacidade financeira e de organização.

"Ah! Ele está no tóxico, no narcotráfico, tem muito dinheiro."

É outra inverdade. O narcotráfico vem sendo usado como senha para fazer o controle social, em todo o país. É simples. Se o pessoal da favela tivesse mesmo o poder e a quantidade de dinheiro que dizem, faria o controle de fora, mas aquele varejista que controla a droga fica na própria favela. Ele nem sabe para quem trabalha.


Obs3: É a proletarização do narcotráfico nas favelas, bem diferente da idéia que tentam vender. Quem leva as drogas para lá? Quem controla? Quem lucra?


O jogo do bicho está infiltrado em todos os Poderes constituídos!

Um dos crimes organizados no Brasil, não só no Rio de Janeiro, é o jogo do bicho. A definição que temos de crime organizado é: primeiro, ser cartelizado. No Rio de Janeiro, o controle do jogo do bicho na zona oeste é da família do Castor de Andrade, o da área da Tijuca é do Haroldo da Tijuca, em Nilópolis reina o Anísio Abraão Davi, em Niterói são outros.

Segundo: o jogo do bicho existe em nível nacional. O Estado da Bahia dá descarga para a família do Castor de Andrade, o Acre faz a descarga com o Luizinho da Imperatriz, o de Minas Gerais faz a descarga no Anísio, e por aí vai. O jogo é controlado e organizado em nível nacional.

Terceiro: este crime está infiltrado nos poderes constituídos. Ele elege a representação política dele dentro da Assembléia Legislativa, da Câmara dos Deputados e da Câmara dos Vereadores. Banca campanhas voltadas para o Poder Executivo. No geral, ele tem influência em todos os poderes, inclusive no Judiciário. Porém, nos estados do Norte e do Nordeste a miséria é tanta que ele não consegue nem chegar. É uma situação diferenciada, mas no Sudeste e Leste ele tem peso.

É bem visível no Carnaval, a presença do crime organizado no poder constituído: a Liesa (Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro), a liga que eles montaram, é a direção do jogo do bicho, do crime organizado. Ela aluga o espaço público, o Sambódromo - a direção do crime organizado é parceira do Estado. Aí está a característica do crime organizado. Nós vamos ver o prefeito do Rio de Janeiro com colete, em que de um lado está escrito Riotur e do outro Liesa. É o crime organizado bancando e organizando o Carnaval do Rio, o maior evento turístico do país!


Obs4: E ao vivo e a cores para todo o Brasil. Chega a ser vergonhoso o tratamento que a mídia dá aos contraventores no Carnaval, sendo entrevistados como autoridades.

O jogo do bicho opera com o homicídio, é mantido pelo sangue!

O jogo do bicho não é um negócio inocente. Todo mundo acha que não tem problema nenhum, até a vovozinha joga. Não é isso, não! O jogo do bicho é mantido pelo sangue. Numa área determinada, ninguém faz concorrência, porque no dia seguinte vai ser morto. O jogo do bicho opera com o homicídio, o mais grave dos crimes que existe para o homem.

A desculpa do administrador público incompetente é que o crime organizado está na favela. Favelado não constitui crime organizado, mas bandos. Lógico, tem bando lá no Alemão, no Jacarezinho, mas esse pessoal não é cartelizado.

"Ah ! Tem Comando Vermelho, tem Terceiro Comando!"

Mas eles se engalfinham. Eles se enfrentam permanentemente - diferente dos banqueiros do bicho que não se enfrentam, nem delatam o outro. O Disque Denúncia vive em função da delação que o Terceiro Comando faz do Comando Vermelho e vice-versa. Para justificar a incompetência, eles dizem que os bandidos do Rio de Janeiro estão vinculados com os bandidos de São Paulo.

Só quem não conhece a polícia acredita nisso. Pode, eventualmente, um marginal do Rio ter relação com outro de São Paulo, mas isso não quer dizer que seja um nível de relação de organizações criminosas. Em São Paulo, eles acabaram com a direção do PCC (Primeiro Comando da Capital). Acabou o PCC. Onde está a direção aqui do Rio?

O que acontece no Rio de Janeiro? O chamado crime organizado é mantido pela organização que existe dentro do próprio Estado. É a própria polícia que mantém isso. Uma boa parte da polícia do Rio de Janeiro é corrupta! Essa afirmação não constitui novidade. Basta procurar nos jornais nos últimos três meses. É essa polícia corrupta que mantêm o narcotráfico no Rio de Janeiro. Não só as polícias civil e militar do Rio de Janeiro mantêm os pontos do narcotráfico do Estado, mas também a Polícia Rodoviária Federal e a Polícia Federal. O aparelho de repressão do Estado do Rio de Janeiro é corrupto de tal forma, que concorre com ele mesmo.

Este é o problema que ninguém quer tocar: o Estado brasileiro é um Estado altamente corrupto! Só este Estado corrupto pode manter o sistema capitalista, porque a corrupção é inerente ao sistema capitalista. Então fica tudo em casa. Essa polícia corrupta não vai tocar no rico, pôr o burguês na cadeia; não vai investigar o dinheiro desviado do Fisco e do Tesouro; tampouco vai investigar o Estado por dentro. É o grande acerto de contas que existe. Quando falo Estado Brasileiro, estou falando de Poder Executivo, governador, prefeito, presidente da República, seus secretários e ministros; do Poder Legislativo, Câmara Federal, Senado, Assembléia Legislativa e Câmaras de Vereadores, Poder judiciário e todos os tribunais.

A função desse Estado é arrecadar dinheiro: uma parte vai para a classe dominante fazer a sua manutenção e o restante é gasto no controle dos negligenciados. Não vê isso quem não quer! Quando a "mídia" fala em crime organizado e estado paralelo nas áreas de exclusão ela está desinformando o povo. Não é lá que eles estão!

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Hélio Luz foi deputado estadual pelo PT na última legislatura, não aceitando renovar sua candidatura. Foi Secretário de segurança do Governo do Estado, prestando inúmeros e corajosos depoimentos sobre a truculência e corrupção no aparato policial.


Perfeito. Vale mais que muitas teses de doutorado.

Um comentário:

Anônimo disse...

Muito lúcido o artigo. O Hélio Luz é um cara brilhante (hehehe, tem piadinha aqui :)
Eu acho mesmo que a favela é senzala. E a classe média adora a idéia de ter próxima a empregada que dorme perto, se não nas minúsculas "dependências", na moradia equivalente, a favela. E isso serve para o pintor, o porteiro, essa figura do "bom pobre trabalhador", que assim como Sérgio Buarque, esperamos que seja um homem cordial. Ah, mas quando eles não são... assim, como na nossa casa grande, tínhamos os paus de arara prontos para aqueles que ousavam ser um pouquinho menos subservientes, ou oh, infâmia, questionavam a condição de escravos ou a imensa bondade de quem "lhe *dá* um emprego ou uma chance". E dá-lhe caveirão.